Se você, assim como eu, nasceu nos anos 90, provavelmente não vai conseguir assistir a Entrevista com o Demônio sem lembrar da comoção gerada pelas cartinhas de Yu-gi-Oh no Brasil e como isso foi veiculado na televisão, principalmente num programa do estilo late night bem específico.
E é a partir dessa construção em cima do pânico satânico e dos populares late night shows que os irmãos Cairne direcionam o andamento do filme. Estruturalmente o filme funciona de forma muito semelhante a de um programa de TV sensacionalista. Por praticamente toda sua extensão somos colocados numa posição de espectador que anseia pelo desfecho do programa, pelo seu ápice, o que poderia facilmente ser um problema, mas de forma muito inteligente os diretores nós mantêm muito curiosos com as outras passagens: sentimos a raiva dos comerciais tanto porque queremos chegar logo ao final quanto porque o que estávamos vendo estava muito legal. Um mérito grande da direção nesse aspecto é o uso dos momentos de bastidores, momentos estes em que o aspecto de janela muda, mostrando mais do que a TV é capaz, e as cores somem, dando vez ao belo preto e branco em tom noir, quase nos falando ao ouvido “ei, isso é muito mais do que você deveria estar vendo”.
A presença de um personagem cético e que mantém os pés no chão o tempo todo serve como um meio de nos manter duvidando de que tudo aquilo é real, o que é importante para a proposta de nos sentirmos como um membro da plateia e, até mesmo, como o próprio apresentador. Este assombrado por toda a duração do programa pela culpa que sente pela morte de sua esposa, apesar de em nenhum momento ficar claro que ele é, de fato, culpado de alguma forma, o oferece mais camadas ao personagem. Essa culpa é relembrada em todas as vezes que a presença da esposa é sentida. Além disso, sua presença é diretamente proporcional à intensidade dos acontecimento em tela, articulando cada vez mais frontalidade, seja na cena em que o personagem fala com mortos ou, principalmente, na passagem final, em que o filme aciona uma frontalidade que ainda não havia sido apresentada. Apesar de ao longo de todo o tempo estarmos esperando por um fim apoteótico, somos surpreendidos. O filme abraça o frontal como se nos estivesse oferecendo aquilo pelo que vínhamos ansiando de forma sádica e até irônica, causando um sentimento de confusão por meio da catarse.
Entrevista com o Demônio articula uma crítica ao click bait e ao sensacionalismo midiático através de um simulacro de programa de TV, nos colocando no papel de espectadores e, com isso, manipulando nossas sensações enquanto se utiliza da previsibilidade de nossos desejos. Ao nos guiar por uma experiência imersiva de ponta a ponta, os diretores atingem seu principal objetivo nos expondo para nós mesmo.
Entrevista com o Demônio (2023)
Late Night with the Devil
Terror
|86 minutos
Direção: Cameron Cairnes, Colin Cairnes
Elenco: David Dastmalchian, Laura Gordon, Ian Bliss, Fayssal Bazzi, Ingrid Torelli
Produzido em: Estados Unidos
Sobre Marcus Dudeque
Marcus é aspirante a crítico de cinema e estudante de jornalismo. Já estuda a arte por conta desde 2022, mas é fã de cinema desde que nasceu.